CONHEÇA
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Quando iniciei as pesquisas sobre Atafona, havia uma personagem recorrente em todas as reportagens e documentários, nacionais e internacionais: Sônia Terra Ferreira. A simpática senhora, agora de 80 anos, era símbolo de persistência e resistência, diante do impacto ambiental e da força do oceano.
“Brinco que minha mãe colocou meu umbigo enterrado aqui na praia, na areia. Meu sentimento por Atafona é indescritível, é bem-estar, alegria, paz”, conta Dona Sônia.
Filha do político Alair Ferreira, Sônia é querida pela comunidade e influente em áreas administrativa, política e religiosa de São João da Barra e Atafona. Atual Presidente da Associação de Moradores SOS Atafona, tem interlocução capaz de captar os problemas rotineiros da população, abrir portas de negociação com os órgãos responsáveis e influenciar para que ações sejam realizadas de fato.
“A erosão costeira tem causado muito estrago e dor. Na SOS Atafona, atuamos como interlocutor entre a comunidade e as autoridades. Especialmente na luta contra o avanço do mar. Mas há problemas em diversas áreas: Ambiental, Segurança, Iluminação, Obras. Sabemos da demora em se conseguir soluções na Justiça. Então buscamos viabilizar soluções juntos”, explica Sônia.
Sua residência, construída nos anos 70, era um dos símbolos do distrito. Abrigou eventos e recebeu homenagens de despedida. Sônia saiu da histórica residência em 2019, por ter acordado com os filhos que faria isso quando o mar derrubasse o primeiro muro. Quando ocorreu, lembra da solidariedade: “Para todo lugar que eu olhava, alguém demonstrava carinho e cuidado. A comunidade se uniu em oração. Me senti em uma fraternidade. Vim morar em Atafona sozinha, mas nunca me senti sozinha aqui”.
Sônia então se mudou para local próximo, também em família. E pretendia manter sua casa preservada. Porém, em 2022, com o avanço mais agressivo do mar, decidiu realizar o processo de demolição antes que sua residência fosse levada. “Achei que seria menos doloroso”, diz ela.
Fato interessante é que houve um intervalo de 11 anos entre o dia em que seu vizinho, o icônico Prédio do Julinho, foi demolido em 2008, o recuo do mar e o retorno da água até a derrubada de seu primeiro muro. Da sacada de sua casa, ela assistiu ao processo de implosão do icônico Prédio. Um álbum de fotos impressas tamanho 10x15cm é testemunha de que ela acompanhou todo o processo de implosão do imóvel, que ela havia visto ser construído décadas antes.
Nesse intervalo de 11 anos, Sônia acompanhou todas as outras transformações da área. Em 2015, com os danos que a erosão causou, ela assistiu também ao processo de demolição do Atafona Praia Clube, principal ponto de encontro dos campistas que veranearam ali ao longo das décadas. E no qual Sônia foi eleita “Rainha do Clube” no início dos anos 60.
Quando esta sua casa foi construída na década de 70, a distância dela ao mar era tão grande que não dava para ver aos olhos. Construída por seu pai, a casa foi símbolo de toda sua história em Atafona desde os 8 meses de idade. Atualmente, já são seis as gerações de sua família que frequentam o distrito: seus avós, pais, tios, irmãos, primos, sobrinhos, filhos, netos. “São gerações diferentes adorando Atafona. Muitas histórias inesquecíveis”.
Sônia nasceu e viveu em Campos dos Goytacazes até os 18 anos de idade. Foi quando toda sua família se mudou para o Rio de Janeiro, onde ela viveu a maior parte de sua vida. Constantemente retornando a Campos por trabalho e sempre indo a Atafona por saudade: “A cada folguinha, eu já deixava sapato e relógio dentro do carro, e saía. Era liberdade absoluta”.
Sônia conta que o desejo de morar em Atafona sempre a acompanhou: “Mas a vida não é muito do jeito que a gente quer, mas sim do jeito que pode. Então fui seguindo”. Criou seus três filhos no Rio de Janeiro ao longo de um casamento de 21 anos. Enquanto estava vivendo a recente separação, descobriu um câncer e iniciou seu tratamento: “Eu pensava que precisava ficar bem para colocar meus filhos para o mundo. E que só aí poderia vir morar em Atafona”.
Após 4 anos da descoberta da doença, Sônia se viu curada e foi com a família passar Carnaval em Atafona. Na Quarta-Feira de Cinzas, eles voltaram. Ela não. Ao longo das semanas, intensificou seu tempo no balneário e longe da capital. Quarenta dias após o Carnaval, durante a famosa Festa de Nossa Senhora da Penha, Padroeira do município, teve certeza de que ali era seu lugar no mundo.
Nesse período, Sônia se envolveu com a Igreja e passou a se dedicar a trabalhos da comunidade. Quando encontrava os filhos, eles a achavam melhor de saúde. “Eu dizia que estava no paraíso. Caminhava na praia, lia, tinha amigos. Até hoje eles dizem que, se não fosse Atafona, eu não estaria mais aqui’.
Nos anos seguintes, Sônia ainda precisou enfrentar um aneurisma cerebral: “Operei o cérebro. Foi muito difícil. Mas todo o período que vivi na Igreja, como ministra da Eucaristia desde 2005, ajudou nesse caminhar”.
A Festa de Nossa Senhora da Penha é o principal evento da região. “É um povo de muita fé. Mais de 5.000 pessoas vêm para os festejos, que incluem missa, procissões terrestre e fluvial, shows. É um momento divino e de muita emoção”.
A devoção à Nossa Senhora da Penha inclui relatos de milagres na região. “O último que aconteceu foi um rapaz pescador, cujo barco virou e ele caiu no mar. Teve que nadar por horas e conseguiu se agarrar a uma boia perto do Açu. Ficou dois dias à deriva, mas manteve a fé. Até conseguir ser visto e resgatado”, nos conta Sônia, informando que sua religião é Católica Apostólica Romana.
A Atafona, outras religiões também atribuem a crença de um lugar especial: “Dizem os espíritas Kardecisitas que há um Hospital Espiritual localizado no trecho entre a Caixa d’água e o Pontal. E que os espíritas lá interferem positivamente”, complementa ela contando que muitas pessoas idosas vieram para Atafona curar suas doenças.
Seu avô materno é um desses exemplos. Além de desfrutar do clima da época, fazia uso de um elemento característico de Atafona com poderes terapêuticos: a areia monazítica. “Meu avô teve 5 derrames, problemas nas pernas, de circulação. Então ele vinha para Atafona com minha avó. Ia até a praia com o charreteiro Seu Ercílio, que o ajudava a passar a areia preta nas pernas e molhar. Vovô, depois de 2 ou 3 meses, voltava andando para Campos”, relembra.
Em 1997, quando Sônia Ferreira se mudou definitivamente, começou a trabalhar na Prefeitura de São João da Barra. “Eu sempre gostei muito de Política. Mas meu pai me segurava, porque sabia que meu marido não gostava. Com o falecimento do meu pai e a separação do casamento, escutei as pessoas que sempre falavam para eu me candidatar. Cheguei a ser Suplente para Vereadora, com votação expressiva”, conta Sônia.
Durante os 19 anos seguintes, Sônia trabalhou na Prefeitura, nas Secretarias de Turismo e de Cultura. Em 2016, interrompeu sua carreira profissional para conseguir se dedicar mais aos cuidados com a família.
Em março, o irmão de Sônia faleceu em um acidente na estrada. Ele morava no Rio e viajava constantemente para Campos a trabalho. Sônia passou então a ir muito à capital. Sua mãe, preocupada com a filha, decidiu se mudar para Atafona também. “Ela me disse ‘Já perdi um filho na estrada, não quero perder outro’”, relembra Sônia. Mas, em agosto, a mãe sofreu um acidente doméstico e se tornou cadeirante. Na mesma época, Maria, que havia sido babá dos filhos de Sônia, e morado com a família por 53 anos, teve Alzheimer e também foi morar com elas em Atafona. “Eu parei de trabalhar para cuidar delas. Mamãe faleceu 2 anos depois e Maria, em 2022”, lembra.
Atualmente Sônia divide seu tempo de trabalho entre a SOS Atafona, o voluntariado na Igreja e o Conselho de Leigos do Brasil.
Testemunha de toda a catástrofe ambiental em Atafona, Sônia relata que, desde 2015, há dois projetos apresentados na comunidade para resolução da questão do avanço do mar. Um seria de criação de estruturas físicas até o Balneário para conter a água. O outro seria de engordamento da praia. Mas nenhum dos dois garante o sucesso do resultado. “Segundo um geólogo que conversa muito conosco, Atafona é um dos quatro locais do mundo inteiro que tem uma situação natural atípica”.
A interferência humana na natureza piorou a situação, segundo Sônia: “Era um Delta, que hoje deixou de ser, em função da fraqueza atual do Rio Paraíba do Sul. Pelas várias cidades que ele passa, vão tirando tanto do rio, que ele chega aqui quase morto. Tão fraco, que deixou fechar a Foz dele, que era em Atafona. A Convivência, que era uma Ilha, foi incorporada ao território e erroneamente atribuída ao município de São Francisco de Itabapoana”.
Sobre a Ilha da Convivência e a Ilha do Peçanha, Sônia tem lembranças carinhosas: “Lá moravam os pescadores e tinham os brejos, então pegávamos os camarões quase que com a mão. Eles sabiam preparar peixe, camarão e caranguejo como ninguém. Era um preparo bem primitivo, artesanal, muito saboroso. Faziam buracos na terra, montavam uns gravetos e cozinhavam ali no fogo, salgando apenas com a água do mar. São lembranças sutis e inesquecíveis”.
Sônia nos acolheu como um abraço de avó no processo de pesquisa. Abriu sua casa, suas lembranças, seus pensamentos. E nos ajudou a compreender o que é a “fresca” que ela considera tão especial em Atafona. A brisa suave, o ventinho aconchegante. “A vida aqui é mais leve. Revivo as pessoas que amei e amo, os momentos que vivemos. É um sentimento de paz, de pele. Me sinto um passarinho solto da gaiola”.
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