CONHEÇA
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Carmélia Barreto nasceu na Ilha da Convivência em 1949. Sempre teve o sonho de contar suas lembranças da Ilha da Convivência, seus moradores, suas histórias. E esse sonho ficou guardado por muitas décadas. Em 2023, realizou esse marco em sua vida e na da comunidade, que acompanhou sua perseverança.
Através da Editora Gregório, liderada por Izabel Gregório, Carmélia se tornou autora. Sua família a ajudou a redigir, organizar, materializar tantoas anos de pensamentos. Suas memórias remontam o quebra-cabeça que se tornou recontar sobre a Ilha da Convivência, local que foi a primeira vítima do intenso processo de erosão costeira que acometeu Atafona, em São João da Barra, no Norte do Rio de Janeiro.
“Eu escrevi esse livro há muitos anos, desde pequena. Ele já estava escrito dentro da minha mente. É um presente para minha família e para toda a comunidade. Fiz com a ajuda dos meus anjinhos, da minha família que amo muito. Não sei porquê, mas sou muito querida, tenho amigos e todos gostam muito de mim.
Quando pequena, tudo eu queria saber. Eu fazia muita pergunta para papai: ‘Quando?’, ‘Por quê?’, ‘Onde?’. Tudo ele me respondia, ele tinha paciência. Minha mãe também, mas não me dava tanta conversa. Ele sentava e conversava tudo comigo. Eu perguntava e fui aprendendo nome por nome. Tataravós, bisavós, tudo eu aprendia.
Sempre me preocupei da minha família conhecer a história da família, das pessoas. Meu objetivo era ao menos digitar e entregar as folhas para eles com as histórias contadas.
“A Ilha da Convivência era linda, linda. Era uma espécia de coroa, arenosa, com pequenas dunas. Algumas pessoas contam lendas de que foi formada por um naufrágio, mas nunca nem meu pai, nem ninguém da Ilha falou sobre isso. Não há vestígio nenhum disso ser verdade.
O sol emergia do mar. Seus raios cintilantes deixavam suas ondas coloridas. Nas noites de lua cheia, seu mar ficava cor de prata. Verdadeiro espetáculo da natureza. A Ilha era palco daquela bela apresentação do sol e da lua. O público era aquele povo sofrido.
As casas eram de entulho: barro com areia e madeira extraída do mangue. Porém já tinham algumas de telhas. As casinhas eram baixas, com portinha e janelinhas, uma de cada lado. Pareciam monstrinhas. Quando ventava, as casas balançavam. Dava essa imrpessão na gente. E ficavam entre pequenas dunas, que haviam por toda a Ilha. Eu era pequena, e tinha medo.
O vento nordeste predomina nessa região. Quando soprava na Ilha, era muito forte. Logo as portas eram fechadas. Lembro de um adágio dos pescadores: ‘agosto mata, setembro raspa’ . Porque era impossível pescar nessa época, por causa do vento. As pescarias eram feitas em batelões, aquelas canoas com remo”.
“Pelo que eu ouvia deles, a família Alves Barreto foi uma das primeiras a ocupar a Ilha. E depois teve seu sobrenome alterado para Pedra. Meu pai falava que o avô dele era muito bonito, era caboclo, mistura de branco com índio. Meus bisavós eram João e Inácio Alves Barreto. Eles contavam que tinham vindo de um lugar ‘pra lá de Campos’, que era do Engenho dos Goytacazes. Ou seja, mistura dos índios Goytacazes com os brancos. As características se encaixam bastante com esse povo. E nós não negávamos nossa origem. Minha mãe me chamava de ‘índia brava'”.
Carmélia narra em seu livro memórias que ouviu de relatos de seus familiares e de moradores da Ilha da Convivência durante toda a sua vida. Traz relatos de histórias pessoais, de histórias de heranças, transmissões de terra, alterações de sobrenome, transações econômicas devidas e indevidas que ocorreram ao longo do tempo com o povo humilde que ali morava. A maioria analfabeto. Um verdadeiro acervo de informações de quem viveu uma época e um território que não mais existe. Narrados em primeira pessoa, uma preciosidade para historiadores, estudantes e curiosos por histórias únicas e autênticas.
“Eu era encantada com a Ilha. Ía pro mangue, pescava siri imenso, amarrando pedacinhos de folha e linha. Papai ía pescar e eu o levava até a praia. De tarde, eu ía esperar ele voltar. Me levava para pescar. Quase mori afogada com ele. Mas sobrevivemos. Mas a coisa mais precisa era o amor entre nós. Entre todo mundo. Maior tesouro. Foi aí que comecei a observar mais o povo, o modo de falar. Observava as gaivotas. Os homens mascavam fumo, cachimbo. As mulheres faziam comida, faziam rede, escalavam peixes. Todos muito caprichosos. As casas eram um capricho.
Por volta de 1959, veio a ‘Janaína’, um navio imenso. Com guindaste, porão, tudo. Nessa época, não se trabalhavam com gelo. Então era preciso que a família fosse junto na pesca, para que as mulheres escalassem o peixe, o salgassem. Havia muita fartura na natureza quando eu era pequena.
Embarcamos, o maquinista ligou, o navio começou se movimentando. Deu 3 apitos. Era 4 ou 5 horas da tarde de um dia de verão. Na Ilha, todos acenando com chapéu, camisa, mãos. No Pontal de Atafona, a mesma coisa. Que vida deliciosa que era! Que vista que tínhamos na viagem, mar afora.
Eu queria escalar o peixe, mas era pequena e eles não permitiam. Sabe o que fizeram pra me alegrar? Pegaram arraia, um pedaço dela e me deram uma faca cega. Eu fiquei lá, feliz da vida, acreditando que eu estava abafando! E uma hora lembro de ajoelhar e rezar pro mar pedindo pro meu pai pegar bastante arraia. Ele ouviu e falou ‘Meu Deus, não escuta essa menina não’. Não entendi, porque achava que era bom e que ele queria também.”, lembra Carmélia rindo, com muito bom humor.
Todos dormiam em barracada. A missão foi um sucesso. Quando o pessoal daqui soube da abundância de peixe, da facilidade, muitos se mudaram para lá. Campos, Macaé, Barra de São João, Rio das Ostras.
Depois dessa época, eu já adulta, veio uma cooperativa fundada por norte-americanos. Ela financiava embarcações, viagens, trabalhos, gelo, caminhão. Os processos mudaram.
“Quando o mar veio forte em Atafona, foi a Ilha, foi cooperativa, foram barcos, foi tudo embora. Acabou tudo. Foi na década de 70. O mar avançou muito rápido. A Ilha media uns 3 quilômetros mar adentro. Era linda. Meu Deus, como acabou? Foram mais de 5 ruas de uma só vez.”
Carmélia Barreto escreveu poesias e versos expressando seus sentimentos:
“A tristeza me consome.
Porque sou apaixonada
não pelo homem,
com certeza pela natureza.”
“Desci da Serra.
Sou desta terra.
Aqui me encontro com o mar.
Deus me criou perfeito.
Bonito e cristalino,
enquanto me preservarem.
Nuvens negras sombreiam
minha alma.
Pobre de mim
Que me vejo em agonia.
Não há quem me socorra?
Eu lhe dou sustento.
Tu causa-me tormento.
Sacio a tua sede,
para viveres.
E tu me envevenas
para me tirar a vida.
O meu nome é Paraíba,
mas não sou água ruim.
Não deixe que eu morra.
Não haverá vida sem mim.”
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