CONHEÇA
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Quando morava em Goiânia, Fernanda Pires não conhecia o mar e não imaginaria nunca que a pesca viria a ser seu principal instrumento para a emancipação feminina. Até o dia em que ela conheceu Atafona: “Dizem que quem bebe do Rio Paraíba do Sul, não sai mais de São João da Barra. Quando cheguei aqui, não entendia da questão da pesca. Hoje minha relação é totalmente focada em fazer com que as mulheres se tornem empreendedoras, pincipalmente por meio da pesca artesanal e sustentável”.
Hoje Fernanda é Líder da Cooperativa Arte Peixe, Presidente do Conselho da Mulher (CMD) de São João da Barra, faz parte do Projeto de Educação Ambiental (PEA) e é representante da região em uma série de outras iniciativas públicas e privadas.
Pioneira a ocupar alguns desses espaços de liderança, costuma perceber desafios de gênero na sociedade: “Hoje as mulheres têm mais espaço de fala, mas ainda percebo dificuldade de sermos validadas em reuniões, de sermos ouvidas e respeitadas em negociações, ainda mais em segmentos de negócio historicamente masculinos. Acredito que mulheres e homens precisam avançar de mãos dadas na sociedade, um contribuindo com o outro. Esses projetos vieram para fortalecer também as mulheres na área da Pesca”.
Desde pequena, Fernanda viu sua mãe como exemplo de garra e realização. Mãe solo de dois filhos, era enfermeira e montou uma fábrica de salgadinho junto a uma sócia.
Quando Fernanda se encantou por Atafona durante uma viagem e retornou a Goiânia, já decidida a ir morar na região, sua mãe não teve dúvida de que iria também. Ela havia perdido o outro filho pouco antes. “Eu disse a ela que Atafona era meu lugar e ela disse ‘Vou te acompanhar, vou me aventurar junto de você’’.
O início não foi fácil. As duas precisaram se adaptar à comunidade, fazer novas relações, descobrir formas de ganhar dinheiro para pagar as contas. A mãe, sempre habilidosa na culinária, fazia pizzas e Fernanda vendia na rua.
Anos depois, a mãe de Fernanda foi uma das fundadoras da Cooperativa Arte Peixe: “Eu via minha mãe com muita coragem e ousadia, enfrentando toda a dificuldade da Cooperativa, porque ela não conhecia de pesca quando chegou em São João da Barra. Mas ela queria mudar aquela situação que ela via e vivia”, relembra Fernanda.
Já instalada em Atafona, Fernanda se casou com um pescador e começou então a perceber como era, na época, a vida das mulheres dos pescadores. “Os homens iam pescar e quando chegavam faziam a divisão do pescado. Normalmente a mulher não participava e ainda não participa em muitas famílias”, lembra. Segundo ela, é comum ser atribuído às mulheres as funções de limpar o peixe e o camarão. Mas elas não se envolverem com o dinheiro recebido pela venda do produto.
Ainda hoje, nas atividades tradicionais, Fernanda relata que há poucas mulheres. “Só conheço uma mulher que sai para pescar com seu marido, mas não recebe por esta atividade, de forma a ajudar o companheiro. Tenho dúvida se não há mais mulheres porque elas não querem ou porque costumam seguir o modelo que ocorre até hoje. Esse assunto é importante, porque há o beneficiamento do pescado. A mulher costuma trabalhar no processo, mas não recebe por isso. Eu gostaria de ver mais mulheres na pesca, também vendendo e ficando com o dinheiro. Gostaria de ver o grupo todo fortalecido”.
A criação da Cooperativa Arte Peixe foi em 2006. Realizada por um grupo de mulheres que se reuniu, a partir do projeto Produzir, do Governo Federal junto com a Secretaria de Pesca. Em 2007, elas fizeram cursos com a perspectiva de que aprenderiam a produzir produtos para vender localmente. “Na época, ninguém entendia o que de fato era uma cooperativa. As necessidades de certificação, registros, selos, toda a operação que envolvia. Mas com o tempo, o conhecimento foi sendo transmitido e a profissionalização ocorreu”, analisa Fernanda, que coordena todas as iniciativas da Cooperativa hoje.
Fernanda tem uma visão ampla e estratégica da Pesca Sustentável. Para ela, a região subutiliza seu potencial ao somente focar na pesca, limpeza e venda. “A gente pode integrar toda a cadeia da pesca, com o artesanato, a gastronomia, a cultura. Precisamos fortalecer isso com políticas públicas. Imagina a criação de um Festival de Pescado, de Gastronomia em Atafona, em São João da Barra? Na Cooperativa, já transformamos o pescado em Hambúrguer, Linguiça, Quibe, uma série de variedades de produtos que agradam ao público, têm valor agregado e promovem novos empregos na região. O dinheiro passa a ser gasto aqui mesmo, fazendo a economia girar”, avalia Fernanda Pires.
A veia empreendedora naturalmente moldada em Fernanda, através de sua mãe, evoluiu ao longo das décadas com muitos cursos profissionalizantes e estratégicos. Incluindo o Empretec Delas, programa intensivo do Sebrae que acelera a mentalidade empreendedora.
Ela entende que essa mudança de perspectiva e mentalidade pode ser estimulada na população feminina da região. Facilitando a criação de novos negócios baseados na cadeia produtiva da pesca. Além da carne, o peixe pode fornecer, por exemplo, couro para artesanato, escamas para ecojóias, óleo para produção de farinha. Um aproveitamento quase integral de toda a cadeia do pescado, reduzindo o desperdício e aumentando a lucratividade.
Fernanda relata uma série de desafios que já estão mapeados e sendo enfrentados diariamente:
1) Sociais – “Muitos homens pescadores ainda não compreendem a importância de suas esposas terem uma atividade fora de casa, com rotina de compromissos. E nem sempre valorizam também que ela tenha seu próprio dinheiro”.
2) Logísticos – “Nossos produtos são naturais e, consequentemente, perecíveis, sendo assim necessário uma logística mais complexa”.
3) Custos – “A Cooperativa faz parte da Economia Solidária. Não pode ser tratada como uma Empresa comum. Deveria haver custos mais flexíveis”.
4) Venda – “O mercado é muito competitivo e parece haver uma preferência pelas negociações entre homens, por relações de confiança já estabelecidas”.
5) Cultura – “As novas gerações não estão mais atraídas pelo trabalho na pesca, as duras condições de trabalho, as dificuldades ambientais e a baixa perspectiva financeira. Podemos incentivar que a Cooperativa seja vista como uma alternativa, para os jovens pensem em atuar no município e crescer profissionalmente, fortalecendo a comunidade”.
São diversos os casos que Fernanda consegue listar de mulheres que passaram a se perceber como indivíduos após o início das atividades na Cooperativa. “Vai além da questão econômica. É uma questão de autoimagem. A mulher chega aqui sem perspectiva de se tornar empreendedora, sem apoio muitas vezes. E consegue se perceber com potencial, com rede de apoio, com novas perspectivas. É uma transformação visível e acho que muitas mulheres querem trilhar este caminho de mais empoderamento e autonomia”.
O grupo de mulheres também costuma relatar as mudanças que os próprios pescadores de suas famílias contam em relação à antiga abundância de pescado na região: “A gente ouve falar que antes tinha mais especialidade de peixe, que hoje não tem. Hoje há também dificuldade de os pescadores atravessarem a Barra. Muitos descarregam seu peixe em Gargaú, em outros locais e a gente acaba não fazendo essa contagem do peixe aqui. A maioria delas já não quer que seus filhos se tornem pescadores”.
Através dos PEAs, Fernanda acompanha e reflete sobre os problemas do avanço do mar e do assoreamento de Atafona. “Tudo isso impactou demais na vida dos pescadores e suas famílias. Além de toda a economia da região. O Porto do Açu trouxe benefícios como bastante trabalho, mas também trouxe impactos ambientais, já que delimitou áreas onde agora os pescadores não podem mais ir”.
Fernanda veio do Centro Oeste do Brasil, mas marcou seu lugar em Atafona e é uma liderança da comunidade: “Eu penso em tudo que trilhamos até aqui. Minha mãe estaria muito feliz de ver como as mulheres alcançaram novos espaços, como agora nos posicionamos e lutamos por mudanças”.
Fernanda comenta que há pessoas que acham que ela está na Cooperativa em função de sua mãe ter sido uma das fundadoras: “Essa é a minha paixão também, é tudo interligado. Muitas pessoas me apoiaram a chegar aonde estou e sou muito agradecida a elas. Tenho cada vez mais certeza do que caminho que quero trilhar. Minha mãe ficaria feliz por ela, por mim e pelas outras mulheres que estão também nessa caminhada”.
REALIZAÇÃO: